sexta-feira, 2 de setembro de 2011

Entrevista - Dr. Agustus Nicodemus Lopes


Por Trás da Cortina - A neo-ortodoxia já majoritária em nossos seminários? Isso já se reflete no comportamento e no pensamento do evangélico comum?

Augustus -  Eu não conheço a situação de todos os seminários evangélicos. Falando da minha denominação, a Igreja Presbiteriana do Brasil, não creio que a neo-ortodoxia seja majoritária em seus seminários. Pode acontecer que existam seminários de outras denominações, onde professores comprometidos com essa linha teológica formam mais e mais pastores a cada ano. Como resultado, existirá um reflexo cada vez maior, que é às vezes sentido de forma indireta, no comportamento evangélico, como por exemplo, uma visão mais aberta sobre a sexualidade.

·        PTDC - Por que a teologia ortodoxa perde cada vez mais espaço na igreja do século XXI? Como este processo pode ser revertido?

Augustus - Eu não diria que a teologia ortodoxa tem perdido mais e mais espaço em nossos dias. Na verdade, acredito que ela tem passado por um processo de crescimento em vários quartéis do evangelicalismo brasileiro. Por exemplo, existem hoje no Brasil várias editoras dedicadas à publicação de literatura reformada e conservadora, coisa que era impensável 25 anos passados. Além do que, muitos autores brasileiros têm despontado no horizonte das publicações evangélicas, e muitos deles são conservadores na teologia. A realização de congressos, simpósios e encontros sobre a teologia reformada pelo Brasil afora em um número cada vez maior aponta para o crescimento do interesse pela teologia reformada e conservadora. Naturalmente, essa teologia ortodoxa precisa passar por um processo de adaptação às circunstâncias brasileiras, e em certo sentido, é isso que está faltando.

·        PTDC - No blog tempora-mores, você tem abordado muito o problema do liberalismo, e agora, da neo-ortodoxia. Entretanto, o neopentecostalismo não representa uma ameaça muito maior no contexto brasileiro? Por que este assunto ainda não foi abordado no blog?

Augustus - Acaba de ser, com uma postagem minha sobre a teologia da Marcha para Jesus, um evento que no Brasil é comandado por uma igreja neopentecostal. Considero a neo-ortodoxia, o liberalismo e o neopentecostalismo como ameaças concretas à Igreja de Cristo. Só que ainda o neopentecostalismo não recebeu tanto a nossa atenção. Somos três escritores no blog O Tempora, O Mores, e raramente paramos para fazer uma agenda dos assuntos a serem postados. No geral, somos livres para postar sobre qualquer assunto que quisermos. Nada impede que amanhã um de nós poste mais alguma coisa sobre o neopentecostalismo.


·        PTDC - Por que o impacto das igrejas históricas é tão reduzido na sociedade brasileira do século XXI? Quais são as falhas que levaram a este cenário?

Augustus - Não sei ao certo. Uma análise social talvez mostrasse que elas não parecem relevantes diante do cenário brasileiro. Uma análise bíblica talvez revelasse a necessidade de uma purificação e de um verdadeiro avivamento espiritual. Uma análise histórica talvez apontasse para a negligência de ênfases que no passado caracterizaram as igrejas reformadas que fizeram a diferença nas sociedades em que estavam inseridas. O que sei ao certo é que o impacto do Evangelho em nosso país passa por uma profunda reforma espiritual e doutrinária na igreja evangélica brasileira.

·        PTDC - Você tem esperança de que, um dia, as igrejas históricas e a teologia ortodoxa possam realmente impactar profundamente a sociedade brasileira? O que precisa acontecer para que este sonho se torne realidade?

Augustus - Não penso muito sobre isso. Talvez devesse, mas na realidade, ocupo-me mais em fazer o trabalho de base, em ensinar, pregar, escrever, responder perguntas e comentários, na expectativa de ajudar individualmente pessoas que amanhã poderão fazer a diferença.

·        PTDC - Caro irmão Augustus, você escreveu um artigo há muitos anos chamado "Mulheres no Ministério: o que o Novo Testamento tem a dizer?" aonde defendia a sua posição de restrição das mulheres quanto ao ministério pastoral. Tempos depois, um irmão, pastor também da IPB, chamado Carlos Alberto Chaves Fernandes, escreveu um outro artigo refutando completamente o seu artigo, chamado "Mulheres no Ministério: o que o Novo Testamento REALMENTE tem a dizer?". Gostaria de saber se o amado treplicou este artigo, e se o fez, se poderia nos enviar a tréplica.

      Augustus - Não considero que a réplica refutou completamente minha argumentação. Na verdade, acredito que passou muito longe disso. Não escrevi uma tréplica porque não desejei tornar o debate em um confronto pessoal e também porque não achei que era necessário. Qualquer pessoa razoavelmente preparada pode ler os dois artigos e perceber a diferença entre ambos. Deixemos que os artigos falem por si sós.

·        PTDC - Uma das máximas da fé reformada é o Sola Scriptura. No entanto, em  muitos artigos, livros, listas e textos de autores de linha reformada/calvinista encontro uma extrema profusão de citações a Calvino e a Credos e Confissões? Não seria isso, na prática, uma negação do Sola Scriptura? Não induziria isso ao entendimento de que Calvino e os Credos e as Confissões têm valor escriturístico, sendo, na prática, "sinônimos"?

 Augustus - Não vejo o menor perigo. Pode haver algum calvinista desavisado que acabe dando essa impressão, mas todo calvinista sério sabe que as confissões e os credos não são inspirados e nem são infalíveis. Sabem também que são muito úteis e que representam a condensação do pensamento do cristianismo clássico conservador através dos séculos. Sou aberto para investigar e estudar as Escrituras e aperfeiçoar o que pode ser aperfeiçoado na teologia, sem, contudo, relegarmos à obsolescência aquilo que homens melhores e mais preparados que nós fizeram no passado. Os que acusam os calvinistas de colocarem credos e confissões em igualdade à Bíblia se valem de credos e confissões de autores de outras linhas em sua leitura e interpretação da Bíblia.

·        PTDC - Em contato com muitos irmãos, tenho encontrado uma profusão de adjetivos: cessacionista, pedobatista, aliancista, reformado, supralapsariano, infralapsariano, congregacionalista... adjetivos estes adicionados ao nome como forma de identificação. Será que sermos apenas "cristãos" não é mais suficiente? Não é a ênfase extremada em tantos adjetivos e designações e especificações causa de muitas de "nossas infelizes divisões", como diz o Livro de Oração Comum?

·        PTDC - O cristianismo viveu uma época (séculos XVI a XVIII) onde a ortodoxia era defendida com tal rigor que mesmo onde as diferenças eram pequenas, o rompimento entre as partes era inevitável. Por outro lado, vivemos uma época onde a doutrina e a ortodoxia perderam sua importância na vida prática da igreja. É possível vivermos um cristianismo onde a ortodoxia não divida necessariamente as denominações, permitindo um trabalho conjunto em certos casos, mas não seja tão negligenciada na vida diária das igrejas e dos cristãos?

·        PTDC - Muitos cristãos dos dias de hoje defendem uma volta radical à teologia, prática e costumes que remontam às origens da reforma. Esse movimento se reflete não só nas questões de salmódia exclusiva, neopuritanismo e outras correntes entre os reformados, mas também em outras denominações protestantes. Essa reação ao relativismo não seria por demasiado radical, levando em consideração que os reformadores, os puritanos e os avivalistas reagiram face aos desafios propostos por sua própria época, e porque não dizer, um retrocesso?


Augustus - Acredito que se você estivesse convencido que a teologia e a práticada Reforma representam o Evangelho bíblico, também defenderia uma voltaradical as origens da Reforma certo? Para muitos evangélicos hoje, a Reformaprotestante representou um retorno às antigas doutrinas bíblicas que tinhamsido negligenciadas e abandonadas durante a idade média pelo catolicismoromano. Hoje, eles percebem que a situação é similar em muitos aspectos:práticas neopentecostais extremamente parecidas com as práticas católicas,um desvirtuamento do culto a Deus com a centralização no homem, umdesprezo pela doutrina bíblica, o sepultamento das doutrinas da graça e surgimento de um semi-legalismo evangélico, e outros aspectos que pouco diferem da situação caótica em que estava o cristianismo no século 16. Tudo issofaz com que um retorno aos ensinamentos da reforma protestante pareça necessário, desejável e viável,  que as alternativas, como as igrejas tipo comunidades, as igrejas emergentes, os movimentos avivalistas, não têm nem de perto apresentado uma solução para a derrocada doutrinária e espiritual do evangelicalismo brasileiro. Isso não significa dizer que devemos trazer para osnossos dias as idiossincrasias de determinados grupos puritanos, como a questãoda salmodia exclusiva, a proibição radical da mulher falar no culto, a ausênciade instrumentos musicais da igreja, e outras particularidades. Essas coisas não fazem o menor sentido em nossos dias e devemos rejeitá-las firmemente. Elas não representam o cerne da reforma. E por fim, não considero um retrocessotrazemos para o presente as verdades bíblicas e que consideramos válidas euniversais em todas as épocas. Seria um retrocesso voltar a enfatizar ajustificação pela , a salvação pela graça, a soberania de Deus sobre o homem,a necessidade de santificação, a abrangência do cristianismo sobre todas asáreas da sociedade, que são ênfases da reforma protestante.

·        PTDC - Professor Nicodemus, o protestantismo histórico no Brasil tem se tornado uma religião cada vez mais elitista, perdendo força de penetração junto aos mais pobres, para os pentecostais e neopentecostais, e atualmente perdendo força junto à classe média, por conta dos avanços dos neopentecostais, das chamadas "comunidades evangélicas" e dos novos movimentos apostólicos. Como resgatar o envolvimento missionário dos protestantes, lembrando que os puritanos, o metodismo primitivo, os não-conformistas batistas e congregacionais tiveram seu maior exito junto às classes médias e baixas de sua época?


Augustus - Permita-me discordar da sua avaliação, implícita na pergunta. Emprimeiro lugar, não creio que o protestantismo histórico tenha se tornado cadavez mais elitista. Tenho viajado pelo Brasil afora e pregado em muitas igrejashistóricas de diferentes denominações, e raríssimas vezes tenho encontrado igrejas cuja membresia seja caracterizada por qualquer tipo de elite. Aocontrário, encontro mais e mais e irmãos das classes pobres, pois a classe pobretem crescido mais e mais no Brasil. Quem tem se tornado elitista, na verdade,como você disse, são as igrejas neopentecostais, os movimentos apostólicos,com seus pretensos apóstolos dirigindo carros importados e vivendo de maneira nababesca, e ensinando que ser pobre é pecado. O movimento pentecostaltambém tem se elitizado, atingindo cada vez mais a camada média e alta danossa sociedade, com padrão elevado de vida para os obreiros e dirigentes. Vocêencontrará nas favelas não somente igrejas pentecostais, mas também presbiterianas, batistas e outras. Não creio que devamos colocar a questãocomo uma alternativa de evangelizar os pobres ou evangelizar os ricos. Ambosprecisam de evangelização. Qual é o problema sas igrejas históricas tiveremmaior sucesso junto às elites e classe média, e os irmãos pentecostais entre as mais pobres? Se considerarmos as igrejas pentecostais e históricas como igrejas irmãs, podemos encarar a questão da seguinte maneira: num país tão grandecomo o Brasil, devemos repartir a tarefa de evangelização, cada um de nós sededicando a aquilo que sabe fazer melhor ou que tem a melhor oportunidade para fazer.

·        PTDC - Existem versículos que nos mandam evangelizar e pregar a Palavra. Mas também existem versículos que nos mandam alimentar os famintos, vestir os nus e nos envolvermos ativamente junto aos pobres. Os evangélicos em geral dão muita ênfase no pregar a Palavra e pouquíssima ênfase no fazer o bem a todos. Talvez isso se dê pela doutrina protestante da Salvação pela Fé e pela Graça, por oposição à Salvação pelas Boas Obras, do catolicismo. Ao negligenciarmos a ação social, não estamos deixando o fazer o bem como uma bandeira exclusiva de movimentos espíritas ou católicos romanos? Isso não é uma vivência de fé por demais individualista?


Augustus - Mais uma vez peço permissão para discordar das premissas de suapergunta. Não posso concordar que os evangélicos dão pouquíssima ênfase nofazer o bem a todos. Acredito que hoje o movimento evangélico do Brasil está mais sensibilizado do que antes para com as questões sociais, embora estejamos ainda muito longe de fazermos tudo que deveríamos fazer. Não sei se o motivopara termos ficado tanto tempo desconectados da realidade social brasileira foiuma reação à doutrina da salvação pelas obras do catolicismo e do espiritismo.Pode ser que tenha sido. Mas, tenho certeza que não foi por causa da doutrina protestante da salvação pela  mediante a graça, pois somente quanto essa doutrina não é corretamente entendida é que ela se torna em um analgésico ouparalisante doutrinário. Uma pessoa que foi genuinamente salvpela graça,viverá a uma vida de gratidão a Deus, e demonstrará essa gratidão em boasobras de misericórdia. Infelizmente, as alternativas que têm surgido no cenário brasileiro, como a teologia da libertação, a teologia da prosperidade, e outras,acabam se tornando em sérios desvios doutrinários da palavra de Deus, fazendocom que os evangélicos sérios fiquem preocupados e receosos de entrar nessaárea sem uma teologia forte e firme por detrás. Creio que podemos aprendercom a Reforma protestante, especialmente com aquilo que os reformadores escreveram e praticaram acerca da responsabilidade social das igrejas, como por exemplo, na cidade de Genebrasob a batuta do mestre Calvino.


·         O Dr. Augustus Nicodemus Lopes é Ministro Presbiteriano, editor do blog:http://tempora-mores.blogspot.com , agradecemos sua atenção ao ceder essa entrevista ao PTDC.
·         Para Maiores Esclarecimentos Sobre Neo-Ortodoxia visite o blog: http://tempora-mores.blogspot.com
·         Glossário de Termos Teológicos
1.      Neo – Ortodoxia: Expressão que designa a posição defendida por Karl Barth (1886-1968), sobretudo no que concerne à maneira como ele se inspirou e interagiu com a teologia do período da ortodoxia reformada.
2.      Ortodoxia: Termo empregado com diversas acepções, dentre as quais as mais importantes são: (a) “doutrina correta”, em oposição à heresia; (b) forma de cristianismo dominante na Rússia e na Grécia; (c) corrente que surgiu no seio do protestantismo, sobretudo no final do século XVI e início do século XVII, e que destacava a necessidade da definição doutrinária.
3.      Teologia da Libertação: Embora o termo possa designar qualquer movimento teológico que ressalte a importância do impacto libertador do evangelho, com o tempo passou a designar especificamente o movimento que surgiu na América Latina, no final da década de 1960, que enfatizava o papel da ação política e orientava-se conforme o propósito de uma libertação política frente à miséria e à opressão.
4.      Protestantismo: termo, que surgiu em conseqüência da dieta de Speyer (1529), utilizado para designar aqueles que “protestavam” contra as práticas e doutrinas da Igreja Católica Romana. Antes de 1529, esses indivíduos e grupos se autodenominavam “evangélicos”.
5.      Protestantismo Liberal: movimento que surgiu na Alemanha, no século XIX, que destacava o aspecto da continuidade entre religião e cultura, o qual floresceu entre o período de Scheleiermacher e Paul Tillich.
6.      Reformado: termo que designa a tradição teológica inspirada nas obras de João Calvino (1510-1564) e seus sucessores. Seu uso é preferido

Fonte: Por Trás da Cortina

Nenhum comentário:

Postar um comentário