By Eudmarly Sena
Introdução
É difícil dizer que temos uma vida cristã saudável se não
compreendermos o verdadeiro evangelho. A compreensão do mesmo nos
distancia, dia após dia, de nós mesmos, dos nossos pecados, e nos
eleva a Deus. O que é o oposto do que acontece em muitos dos arrais
das igrejas evangélicas brasileiras modernas.
Precisamos nos engajar intelectual e emocionalmente na compreensão
do evangelho. Intelectual para que tenhamos o discernimento do
genuíno evangelho de nosso Senhor e Salvador Jesus, o Cristo. A
certeza de que é a verdade de Deus na história humana registrada
nas Escrituras que confessamos.
Emocional porque necessitamos materializar essas verdades em nossas
vidas, a fim de colocarmos em prática diariamente os princípios da
vida cristã que compreendemos do evangelho em oposição a dos
“evangelhos1”.
Precisamos saber identificar o cerne do evangelho, e podemos fazer
isso reconhecendo como temas centrais os temas: Deus como criador,
a universalidade do pecado, Jesus Cristo como Filho de Deus, Senhor
de tudo e Salvador através da sua morte expiatória e vida
ressurreta; a necessidade da conversão, a vinda do Espirito Santo e
seu poder de transformação, a comunidade e missão da Igreja cristã
e a esperança na volta de Cristo.
Todos estamos familiarizados com a palavra “evangelho”, mas
poucos, bem poucos, de nós temos clareza quanto ao seu conteúdo. E
precisamos dessa clareza! Podemos compreender o Evangelhos vendo-o
como um história; “a verdadeira história que fala às nossas mais
puras aspirações e aos nossos mais profundos anseios2”.
Aqui trataremos do verdadeiro evangelho à luz da história, penso
ser uma forma mais rica de entendê-lo apesar de que alguns resumem a
três ou quatro princípios simplificados, eles podem ser úteis, mas
não tão ricos de entender como ver o evangelho como uma verdadeira
história que nos fala hoje e sempre.
Porém, antes definiremos, de forma breve, o vocábulo “evangelho”
a fim de laçar luz para a compreensão da graça de Deus e
necessidade humana, misericórdia divina e miséria humana.
-
O significado da palavra “evangelho”.
A palavra “evangelho” (gr., euangelion, “boas novas”) nos
traz a ideia de uma notícia sobre um fato já ocorrido e que
transforma aqueles que dela se apropriam. Segundo Douglas, “na
literatura clássica essa palavra designava a recompensa dada pela
entrega de boas notícias, e sua transferência posterior para as
próprias boas-novas pertence ao NT e à primitiva literatura
cristã”3.
Observamos então que a palavra originalmente tinha o significado de
recompensa para alguém que dava as boas novas, mas com a influência
do NT e da literatura cristão primitiva, passou representar as
próprias “boas novas”. E assim, “no Novo Testamento denota as
‘boas novas’ do Reino de Deus e da Salvação por meio de Cristo,
a serem recebidas pela fé, como base a sua morte expiatória,
sepultamento, ressurreição e ascensão (por exemplo, At 15.7;
20.24; 1 Pe 4.7)”4.
-
Compreendendo o Evangelho à luz de quatro capítulos da história.
É
bom lembrar que evangelho é uma boa notícia e não um bom conselho,
não é algo que fazemos, é algo que já foi feito por nós e ao
qual devemos responder. O evangelho anuncia uma boa notícia, a de
que fomos salvos, algo que não poderíamos fazer foi feito por nós
sem que precisássemos pagar por isso. E que agora nos resta
responder de forma positiva à essa boa notícia, o evangelho. É
sobre o que Jesus fez para restaurar nosso relacionamento com Deus.
O
evangelho é histórico, foi consumado e teve uma linha de
acontecimentos que culminou na boa notícia. Mas uma vez, evangelho
não é bom conselho, é boa notícia. Lloyd-Jones nos explica a
diferença, ele diz que “o conselho é
conselho sobre algo que ainda não aconteceu, mas você pode fazer
algo a respeito. Notícias é um relato sobre algo que já aconteceu
o qual você não pode fazer nada, pois já foi feito, e tudo que
pode fazer é responder a ela”5.
Por isso o evangelho passa pelo que já foi feito por nós através
da história, em ponto marcantes de nossa existência que a
misericórdia divina se manifestou.
Assim, “é útil ver o evangelho no contexto da história humana
começando com a criação de Deus de todas as coisas, rebelião do
homem contra o Criador, sua subsequente queda em corrupção e
redenção de Deus da qual estava perdido”6.
Então,
vamos observar o evangelho nesse contexto histórico:
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Criação: o mundo para qual fomos criados
A
história começa não conosco, mas com Deus. É verdade que na
humanidade há algo de solene e majestoso, mas não somos o máximo.
Existe algo (ou Alguém) infinitamente maior que nós.
A
Bíblia com que esse Alguém é o único Deus infinito, eterno e
imutável que criou todas as coisas a partir do nada (Gn 1.1-31).
Esse Deus é único e subsistente em três pessoas: Pai, Filho e
Espirito Santo (Mt 28.19). Justamente por ser trino e uno em seu ser,
não foi motivado a criar mundo porque precisasse dele, nunca
precisou de adoração, relacionamento ou glória, como alguns assim
supõem. Deus criou o mundo por causa de sua transbordante perfeição:
seu amor, sua bondade e sua glória.
Deus
criou os seres humanos à sua imagem (Gn 1.27), disso resulta nossa
dignidade e valor. E por sermos humanos, seres criados, significa que
somos dependentes de nosso Criador. Na criação original de Deus,
tudo era bom! O mundo existia em perfeita paz, harmonia e completude.
O homem foi criado para desfrutar da presença de Deus e nela se
deleitar eternamente.
Mas...
-
Queda: corrupção de tudo
Ao
invés de viver e se alegrar nele, servindo e adorando, a humanidade
se voltou contra ele em rebelião pecaminosa (Gn 3.1-7; Is 53.6).
Esse ato de rebeldia lançou o mundo sob trevas e sob a maldição do
pecado. Vestígios de bem permaneceram, mas a completude e a harmonia
da criação original de Deus foram devastadas.
Consequentemente,
todos os seres humanos são pecadores por natureza e por escolha (Ef
2.1-3). Nossa visão não pode ser rasa e superficial do pecado,
ao compreendermos o evangelho entenderemos que o pecado não é,
primeiramente, uma ação; é uma disposição. De fato, trata-se da
aversão
de nossa alma para com Deus, manifestando-se em nosso orgulho,
egoísmo, independência e falta de amor, tanto para com Deus quanto
para com o próximo (Mt 22 37-40).
O pecado trouxe várias
consequências à nossas vidas, sob a ótica das Escrituras vemos
duas que são drásticas, são elas: escravidão e condenação.
-
Escravidão
O
homem que rejeita a Deus está disposto a adorar qualquer coisa.
Quando se voltam contra a Deus, as pessoas vão em busca de outras
coisas a fim de encontrar vida, identidade, propósito e felicidade,
essas coisas se tornam deuses substitutos7.
Assim as pessoas logo ficam escravizadas pelos deuses substitutos,
exigindo tempo, energia, lealdade e dinheiro; tudo o que é e o que
tem (Rm 3.10,11,23).
Tudo
isso passa a governar a vida e o coração, assim, a Bíblia vai
falar do pecado como algo que tem domínio sobre os seres humanos (Rm
6.14). Escravidão é servir à criatura em lugar do Criador, é isso
que o pecado faz e é por isso que é escravizador (Rm 1.25).
-
Condenação
Como consequência da escravidão pelo pecado, estamos condenados
diante do Justo Juiz tanto do céu quanto da terra. “...O salário
do pecado é a morte” (Rm 6.23). Estamos debaixo de condenação,
debaixo de uma sentença de morte por causa de nossa rebeldia, e
traição contra a santidade e justiça de Deus. A ira de Deus contra
o pecado repousa sobre nós (Na 1.2; Jo 3.36).
O pecado trouxe condenação ao homem, este ficou sentenciado a morte
espiritual (separação espiritual) com uma possibilidade de
consequência maior, a morte eterna (separação definitiva de Deus).
-
Redenção: Jesus vem e nos salva
Diante de tal situação deplorável da humanidade perante Deus,
surge a necessidade de um Salvador, um Libertador, um Redentor para
livrá-la da escravidão e da condenação do pecado e para restaurar
a humanidade caída. Somente alguém como Jesus, Deus-homem, poderia
resgatar a humanidade.
Por essa razão, Deus enviou Jesus ao mundo para ser nosso substituto
(1Jo 4.14). Jesus sendo plenamente humano e divino ao mesmo tempo8,
viveu a vida que ninguém poderia viver, viveu uma vida de
obediência. Portanto, foi capaz de receber a punição que
merecíamos por nossa a desobediência e pecado. Jesus viveu uma vida
de obediência perfeita a Deus (Hb 4.15). Na cruz, tomou nosso lugar,
morrendo por nosso pecado. 2Co 5.21 ele recebeu a nossa condenação
e a morte que merecíamos, e agora quando depositamos a nossa
confiança nele, passamos a receber a bênção e a vida.
Pela fé em Jesus somos salvos, e a fé é como entrar no táxi, é
como estar sob o bisturi do cirurgião; é um compromisso de entrega
tranquila e sincera do “eu” a Jesus (Sl 31 14.15). Isso significa
crer no verdadeiro evangelho.
-
Consumação: cumprimento de tudo.
Deus prometeu que Jesus voltará para finalmente julgar o pecado e
fazer novas todas as coisas. Mas até lá, está juntando um povo
para si “de todas as nações, tribos, povos e línguas” (Ap.
7.9). Como parte desse povo chamado e enviado, temos o privilégio de
nos juntarmos a ele em sua missão (Mt 28. 18-20), como indivíduos e
como parte da família espiritual.
Nossa caminhada continua como um povo redimido pelo sangue de Cristo.
E enquanto não se consumar o final prometido, estaremos dando
continuidade a história no quesito de levar as “boas novas”
projetadas por Deus, consumada por Cristo e aplicada pelo Espirito
Santo, ao mesmo tempo em que, as três pessoas da tri-unidade tem
participação em cada peça do teatro dessa história que ainda
continua a mudar vidas. Confiamos em Jesus e somos libertos da
condenação e escravidão do pecado. Recebemos a graça de Deus que
nos torna livres para dizer “sim” para Deus e “não” para o
pecado, diante do nosso estado caído, sem a graça preveniente9,
acontece o oposto (Rm 3 11.12). E aguardamos a bem aventurada
esperança da vinda de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo e a
consumação de todas as coisas.
Nada proporciona mais consolo a alma do fiel que saber que um dia
Deus “aniquilará a morte para sempre, e assim enxugará o Senhor
DEUS as lágrimas de todos os rostos, e tirará o opróbrio do seu
povo de toda a terra [...]” (Is 25.8). Confira ainda (Ap 21.4).
Essa é a boa-nova – a história verdadeira – do evangelho10
-
Ótica do Evangelho
Falamos a linguagem do evangelho, mas é muito raro aplicarmos a
todos os aspectos da vida. Mas é exatamente o que Deus quer de nós.
Em colossenses 1.6, Paulo elogia seus irmãos da igreja por causa que
o evangelho estava “frutificando e crescendo” entre eles desde o
dia em que ouviram e conheceram. Se a nossa transformação não for
de maneira contínua, é porque nos esquecemos do que Deus fez ao
nosso favor, isso é o que Pedro ensina (2Pe 1.3-9). A verdade é que
“se pretendemos amadurecer em Cristo, temos de aprofundar e ampliar
nossa compreensão do evangelho como meio designado por Deus para a
transformação pessoal e comunitária” 11.
Apesar de que muitos cristãos veem com uma visão incompleta o
evangelho, por exemplo: alguns veem apenas como “a porta” como
acesso ao reino de Deus. Porém o evangelho é muito mais que isso!
Não é apenas a porta, mas também na qual precisamos andar todos os
dias da vida cristã. É tanto o meio para nossa salvação quanto o
meio para nossa transformação. O evangelho nos liberta da punição
do pecado e do poder do pecado. O evangelho tudo muda!
A importância de observamos quanto a nossa compreensão do evangelho
é significativa, nos dá o devido entendimento do que é crescer, de
fato na presença de Deus. Quanto mais eu cresço na vida cristã,
mais cresço na percepção da santidade de Deus e da minha
carnalidade e pecaminosidade.
O evangelho nos faz enxergar cada vez mais Deus como Ele realmente é
(Is 55.8,9) a também a mim, como realmente sou (Jr 17.9,10). Não
devemos entender isso como se Deus estivesse se tornando mais santo
ou que eu esteja cada vez mais pecaminoso, na verdade, é a minha
percepção dessas realidades que cresce, isso compreender o
verdadeiro evangelho.
Enquanto cresce minha compreensão do meu pecado e da santidade de
Deus, outras crescem igualmente: minha gratidão e meu amor por
Jesus.
Conclusão
Somos um novo povo redimido, e a história continua pela libertação
do evangelho propagada pela Igreja compromissada com a missão, o
genuíno evangelho que liberta o homem do pecado e da condenação, e
faz dele um novo homem para a glória de Deus. Somo livres para
morrer para nós mesmo e viver para Cristo e seus propósitos. Somos
livres para trabalhar pela justiça no mundo. Somos nascidos de novo
para começarmos a viver para a glória de Deus e deixar de viver
para a nossa própria glória.
Que cresçamos no verdadeiro evangelho, e crescer nele, significa
enxergar mais da santidade de Deus, e mais do meu pecado.
___________________________
1
Uso a palavra “evangelhos” para diferenciar do Evangelho, pois
estes tem se avolumado na sociedade como uma forma corrompida do
Evangelho puro e sem mistura.
2
A Vida Centrada no Evangelho, Robert H. Thune & Will Walker. p.
15
3
J. D. Douglas, O Novo Dicionário da Bíblia. p. 470
4
W. E. Vine, Dicionário Vine. p. 628
5
Disponível em
<https://www.monergism.com/thethreshold/articles/onsite/historical_gospel.html>
6
Disponível em
<https://www.monergism.com/thethreshold/articles/onsite/qna/whatisgospel.html>
7
O que a Bíblia chama de ídolos
8
Jesus não é duas pessoas – uma sendo Deus e a outra sendo um
homem. Não há “o homem Jesus” separado “do Deus Jesus”.
Jesus não tinha (e nem tem) dupla personalidade. Desde que
encarnou, ele é uma só pessoa, porém, dotada de duas naturezas:
uma divina e outra humana.
9
A graça preveniente é simplesmente aquela graça de Deus que
convence, chama, ilumina e capacita, e que precede a conversão e
torna o arrependimento e a fé possíveis.
10
Criação-Queda-Redenção-Consumação, síntese apresentada.
11
A Vida Centrada no Evangelho, Robert H. Thune & Will Walker. p.
20
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